No dia 1° de Outubro de 2015, o Instituto de Relações Internacionais (IRI PUC-Rio), em parceria com a Unidade de Mediação do Sul Global (GSUM), promoveu o debate de conjuntura “Entendendo a crise de refugiados: causas, conseqüências e soluções”.
O debate contou com os palestrantes Bruno Magalhães (IRI PUC-Rio), Roberto Yamato (IRI PUC-Rio/GSUM), Charly Kongo (Cáritas-RJ) e Fabrício Toledo (Cáritas-RJ). Na platéia, estavam professores e alunos de graduação e pós-graduação, pesquisadores e profissionais da área, assim como membros da sociedade civil e representantes de distintas instituições intergovernamentais.
Iniciado pelo Prof. Bruno Magalhães, o debate ofereceu um panorama geral da situação atual, buscando desconstruir não a existência, mas o emprego do termo “crise de refugiados”. Cerca de 60 milhões de pessoas encontram-se hoje em situações de deslocamento interno, aguardando a deliberação de sua solicitação de refúgio, e/ou em refúgio efetivo. Prof. Magalhães ressalta que esse imaginário de crise é reforçado não apenas por tais estatísticas, mas também pela humanização da discussão em termos de sofrimento humano. Assim, existiriam motivações positivas para o reforço do imaginário de um momento de excepcionalidade, com a intenção de capturar atenção e gerar mobilização.
De acordo com o Prof. Magalhães, é importante, no entanto, perceber os aspectos negativos de pensar os acontecimentos atuais sob o jargão da crise, como o apagamento do passado, a absolvição do presente e a despolitização do futuro. O primeiro ocorre pela percepção de que é algo inesperado para o qual não estávamos e nem poderíamos estar preparados. O segundo, porque a crise é securitizada de forma discursiva, como algo perigoso que justifica medidas excepcionais, tal qual o fechamento de fronteiras e o emprego de polícia ao invés da reformulação de políticas, de forma que qualquer efeito colateral negativo seja absolvido. O terceiro, porque no momento da crise nos concentramos em lidar com efeitos imediatos e não com um possível horizonte, desviando-nos de reflexões mais profundas, como acerca dos efeitos nocivos das atuais políticas migratórias restritivas ou acerca da categorização de pessoas em situação de deslocamento como a melhor forma de protegê-las.
Por sua vez, o Prof. Roberto Yamato, que em sua trajetória também teve experiências como oficial de elegibilidade, destaca que é preciso ter, além de um conhecimento de relações internacionais acerca da situação específica do país de origem do solicitante, um conhecimento jurídico e normativo da lei brasileira e de um panorama mais amplo dos direitos humanos codificados na Declaração Universal de Direitos Humanos – contra o qual a lei brasileira precisa ser interpretada. Assim, o Prof. Yamato convidou o público presente a criar um saber mais prático na interseção entre o Direito e as Relações Internacionais.
Outro aspecto abordado pelo Prof. Yamato, diz respeito às limitações no reconhecimento do status de refugiado, uma vez que frequentemente a lei apresenta uma tensão fundamental entre ser humano e ser refugiado, como se esses fossem status concorrentes, e como se cada pessoa só pudesse estar sob uma das duas categorias. Nesse sentido, entende-se que ser refugiado é algo passageiro, passível de resolução para que o indivíduo possa voltar à condição de ser humano. Assim, torna-se necessário perceber o refugiado como um ser humano em movimento, reconhecendo que a vida humana não se limita a fronteiras. Devemos pensar, portanto, o ser humano não como um ser territorializado, nacional. Devemos, sim, pensá-lo como um ser relacional, como alguém que vive com o outro, independente de território ou nacionalidade. Assim, o refugiado é paradigmático para pensarmos em outras formas de organização política e de ser humano.
Originário da República Democrática do Congo, Charly Kongo está no Brasil há 7 anos. A partir de experiências pessoais, o Sr. Kongo relata situações degradantes de guerra e intimidações sofridas, que forçam milhares de pessoas a saírem de seus países de origem. Destaca ainda que são os países vizinhos, frequentemente pobres e também em conflito, que recebem o maior e mais imediato volume de refugiados – visto que poucos emigram para fora do continente.
De acordo com o Sr. Kongo, no Brasil a situação encontrada pelos refugiados tem se mostrado majoritariamente positiva. Ele destaca que a lei brasileira permite que o solicitante de refúgio trabalhe enquanto espera pela deliberação de seu status, diferentemente da maioria dos outros países, além de acrescentar às normas internacionais a possibilidade de solicitar refúgio diante de uma grave e generalizada violação de direitos humanos. No entanto, Charly Kongo ressalta que se encontra aqui também resistência e certo preconceito; primeiro porque o refugiado não percebe que pode ser vítima de racismo até chegar a um lugar onde ele é diferente; segundo, porque o conceito de refugiado ainda é pouco conhecido e frequentemente confundido com outros termos, como fugitivo.
Advogado e oficial de elegibilidade da Cáritas-RJ, além de doutorando em direito pela PUC-Rio, Fabrício Toledo destacou as dificuldades inerentes a sua profissão: como é possível mensurar a guerra, a violência e o nível de democracia preciso para decidir quem é refugiado? Quem pode fazer essa classificação? A quem cabe determinar o nível de direito que cada pessoa precisa?
Tal como Bruno Magalhães, Toledo busca desconstruir a chamada crise de refugiados, fragmentando-a em várias crises. A primeira seria a crise de definição do que é ser um refugiado, de classificação da distinção entre refugiado e migrante, especialmente no Brasil, onde os fluxos recebidos não são de países vizinhos e onde refugiados e migrantes fazem as mesmas rotas para chegar. A segunda, uma crise de fragmentação: dos problemas e da própria guerra, categorizados por especialistas que definem quais problemas e quais guerras conferem ao indivíduo proteção ou não, silenciando histórias individuais e o próprio contexto dos conflitos. Aqui ele traça um paralelo entre as guerras civis em países produtores de refugiados e a situação nos morros do Rio de Janeiro, onde a gestão do conflito também é feita por fragmentação. A terceira seria a crise do humanitarismo, já que esse em última instância também funciona como uma gestão da guerra, pressionando por uma reforma e não por uma rejeição completa dele.
Por fim, temos uma crise de escassez de direitos, decorrente da redução dos movimentos, tanto de refúgio quanto migratório, a uma mera busca pela sobrevivência. Tal redução tem por resultado a concepção de que essas pessoas só têm direito ao refúgio ou status de migrante legal por questões de sobrevivência, de forma que todos os outros direitos que lhes faltam não as qualificam para tal. Isso posto, torna-se necessário conceber os direitos humanos como um direito mais amplo à vida, e não só à vida no limiar da sobrevivência, e entender os êxodos dessas pessoas como regimes de excedência, na medida em que multiplicam formas de viver, de sobreviver e de lidar com as dificuldades – questões essas que se mostram cotidianas para tal tipo de trabalho.