Atual inserção da China (RPC) na América Latina e Caribe via Belt and Road Initiative (BRI)
O que atualmente move e/ou motiva países latino-americanos como Panamá, República Dominicana e El Salvador a romperem relações diplomáticas com Taiwan no intuito de estabelecê-las com a RPC?
A inserção da República Popular da China (RPC) na América Latina e Caribe (ALC) é geralmente vista com alarde e muita desconfiança, embora não se trate de um fenômeno novo. Em 2009, a Costa Rica, tradicional aliada dos EUA, tornou-se o primeiro país da América Central a reconhecer oficialmente a RPC e a assinar um acordo de livre comércio com Pequim. Hoje o que distingue esse fenômeno é sua intensidade e rapidez.
O avanço da presença da China na região e a crescente formalização de laços econômicos, por meio de acordos bilaterais de comércio e de investimentos estão quebrando barreiras históricas na ALC, zona tradicionalmente de influência estadunidense. O que antes era percebido como ameaça, gerava temor de nova dependência econômica-tecnológica e críticas sobre o risco de se contrair dívidas impagáveis (debt-trap) passa a ser desejado. Principalmente porque o discurso de aproximação visa a atender as demandas da região por desenvolvimento – mais empregos, integração regional, investimento direto e financiamento de projetos de infraestrutura.
A partir do momento em que os EUA se afastam do subcontinente e priorizam regiões como Ásia e Oriente Médio, a ALC deixa de colher resultados tangíveis dessa cooperação. Curiosamente, hoje os olhares estratégicos de EUA (America First) e China (China Going Global) invertem-se.
A inserção da China na ALC atualmente vem acompanhada de discurso pacifista, de ajuda financeira e cooperação para o desenvolvimento; portanto se alinha aos anseios imediatos da região. Desse modo, a resistência inicial é superada e gera maior aproximação cultural e linguística da China, além de propiciar maior inclinação para a normatização política das relações bilaterais, por meio de ampliação e aprofundamento de vínculos comerciais e diplomáticos. Hoje, portanto, acordos bilaterais de comércio tornam-se porta de entrada e nova estratégia (sutil e sofisticada) de inserção internacional chinesa, cujo grau de influência é difícil de ser mensurado.
Por outro lado, os críticos ao avanço chinês na ALC afirmam tratar-se de uma via de mão única (unilateral) que só beneficia os interesses econômicos e geoestratégicos da China continental e não os interesses nacionais latino-americanos. O avanço chinês também é criticado por ter nuances colonialistas, imperialistas e predatórias, principalmente por se tratar de um país de tradição não ocidental, distante geograficamente e sem afinidades históricas aparentes. A China, então, estaria se aproveitando do cenário de fragilidade, das instabilidades políticas e das crises econômicas locais e a cooperação China-LAC não promoveria necessariamente desenvolvimento, prosperidade compartilhada e benefícios mútuos.
Entretanto, afirmar categoricamente que a inserção chinesa (via comércio e investimentos) resulta em dominação hegemônica é apelar para um argumento demasiadamente simplista, que não enxerga uma janela de oportunidade concreta que deve ser explorada pragmaticamente, sem vieses ideológico-partidários, sobretudo no atual contexto brasileiro de crise fiscal e recuperação econômica.
O tom puramente alarmista não se justifica, pois a aproximação chinesa não acarreta alinhamento político como aconteceu no contexto de Guerra Fria, uma vez que hoje a realidade global é multipolar e muito menos ideologizada. O que ocorre, na verdade, é uma batalha de narrativas de ambos os lados em busca de influência e hegemonia global, ou seja, EUA e China tentando convencer o mundo de que são modelos de governança. Isso pode ser observado no atual contexto de guerra comercial.
Todavia, é necessário ter consciência de que o movimento chinês não é aleatório nem isento de estratégia, já que visa a formar uma imagem global favorável à RPC que lhe permita trânsito e exercício de poder e influência com mais desenvoltura e menor resistência, sobretudo preenchendo os vácuos de poder deixados pelos EUA no atual período de nacionalismo exacerbado e protecionismo da Era Trump. No caso da ALC, nada mais providencial do que a China estreitar laços culturais e de intercâmbio linguístico entre os idiomas mais falados no mundo (chinês e espanhol).
A movimentação da China rumo à ALC é estratégica, sendo emblemático o fato de metade dos países que ainda mantêm relações diplomáticas com sua rival Taiwan estarem na região. Até outubro de 2018, havia a adesão formal à BRI de países como Panamá, Antígua e Barbuda, Trinidad e Tobago, Bolívia, Guiana, Dominica, e mais recentemente Uruguai (o primeiro do Mercosul) e Venezuela, que, a partir do 2º Fórum Ministerial China-CELAC, passam a ser considerados “extensão natural” da BRI.
Ao notarem essa iniciativa, os EUA cobram satisfação de seus representantes diplomáticos em El Salvador, Panamá e República Dominicana, países que, quase em bloco, trocaram Taiwan pela China. Aliás, não é de agora que os EUA estão envolvidos em um embate hegemônico em sua tradicional zona de influência regional. Logo, não é à toa que diplomatas latino americanos estejam culpando exclusivamente os EUA e seu habitual distanciamento da ALC pela perda relativa de espaço e influência. Na ALC há, portanto, um fator complicador – a triangulação China, Taiwan e EUA – e suas possíveis implicações para a “One-China Policy” nas Américas.
Na prática, a aplicação da One-China Policy gera impasses e contrassensos. Os casos de El Salvador e EUA são emblemáticos, sobretudo em razão das concessões e reais motivações por trás do reconhecimento diplomático da RPC. Os EUA, além de não aceitarem a alegação de que Taiwan é parte da China (RPC), também não reconhecem Taiwan como um Estado soberano capaz, por exemplo, de participar de organizações internacionais (OIs). Por outro lado, os EUA defendem a participação de Taiwan em OIs onde a condição de Estado não é exigida, apoiando os esforços taiwaneses para expandir seu perfil internacional de formas não oficiais, muitas delas controversas. Um exemplo é a recente intenção de vender armas para Taiwan. Já El Salvador, sob suspeita de fazer concessões de portos estratégicos (como o de Cutuco, servindo de eventual zona de comércio preferencial aos produtos chineses, e o de La Unión, para uma suposta base militar), acusa os EUA de hipocrisia, já que eles reconhecem e se relacionam com a China continental há quase quatro décadas.
Apesar do bom histórico de relacionamento bilateral, inclusive financeiro, de Taiwan com a ALC, esses países estão, agora, sendo atraídos pelo capital, turismo, e amplo acesso a mercados, empréstimos e investimentos chineses que virão a partir do reconhecimento da RPC. É esse potencial de transformação que tem sido a vis attractiva. Afirma-se, portanto, que o que atualmente move e/ou motiva países latino-americanos são as vantagens comparativas. A ALC está, assim, pensando em termos econômicos, pragmáticos, e não ideológicos.