No dia 20 de agosto de 2015, a Unidade do Sul Global para Mediação (GSUM) teve o prazer de receber sua fellow Mabel González Bustelo (Universidad Complutense de Madrid) e Manuela Trindade Viana (GSUM/ IRI PUC-Rio) para o colóquio “Engajamento com grupos armados não convencionais? Experiências latino-americanas”. Participaram do evento, que ocorreu no BRICS Policy Center, Rio de Janeiro, pesquisadores e profissionais da área, assim como estudantes de graduação e pós-graduação.
Em sua apresentação, González discutiu acerca dos riscos e benefícios associados ao engajamento de grupos armados não convencionais para a mediação e a resolução de conflitos. A partir de suas experiências em El Salvador, um país assombrado por confrontos violentos entre gangues, González demonstrou as contradições e oportunidades para as iniciativas de mediação relacionadas à inclusão de tais grupos.
Os conflitos no século XXI seguem padrões que não são compreendidos pelas categorias tradicionais de guerra vs. paz ou violência vs. violência política. A vasta maioria dos conflitos modernos não é inter-estatal, mas interna aos Estados, uma tendência que pode ser observada especialmente a partir dos anos 90. Nesses novos contextos, grupos armados não convencionais têm um papel-chave: ao não estarem integrados a instituições governamentais formais, tais grupos possuem estrutura organizacional própria, desenvolvidas em sua maioria ao longo de um período de tempo mais extenso. A violência é por eles considerada um meio legítimo para atingir os seus objetivos políticos.
No entanto, o conceito de grupos armados não convencionais é amplo, abarcando diversas organizações que fazem uso da violência para atingir múltiplos objetivos, como poder político, retorno econômico, luta social, mobilização religiosa ou terrorismo. Dessa forma, grupos paramilitares, gangues juvenis, cartéis de drogas, senhores da guerra, grupos terroristas ou até mesmo companhias privadas de segurança podem constituir grupos armados não convencionais.
Como esses grupos podem contribuir para a mediação de conflitos e as negociações de paz? E quais são os riscos de incluí-los na mesa de negociação?
Um argumento pró-inclusão, diz González, é de que esses grupos podem atuar como spoilers e comprometer o acordo caso não participem do processo de negociação, especialmente se contarem com apoio político. Experiências prévias mostram que acordos que não incluem as principais partes interessadas têm pouca probabilidade de obterem sucesso a longo prazo. E, afinal, estabelecer comunicação com tais grupos não os legitima ou legitima suas ações, segundo González. O mediador tem sempre a prerrogativa de afastá-los da mesa de negociação se julgar necessário.
Por outro lado, como apontado por González, qualquer engajamento traz o risco de fortalecê-los e aumentar a sua legitimidade aos olhos de seus constituintes e da comunidade internacional. A mediação pode estimular demandas crescentes por parte desses atores e prejudicar seriamente a credibilidade e legitimidade dos atores externos frente ao público geral. Além disso, é extremamente difícil para um governo eleito democraticamente justificar engajamento com tais grupos.
Trazendo a atenção para a América Latina, González argumenta que se trata de uma das regiões mais violentas do mundo. A taxa de homicídio na América Latina é cerca de quatro vezes maior do que a média global e cerca de 30% desses homicídios são atribuídos ao crime organizado e à violência relacionada a gangues. As leis internacionais provam-se impotentes diante desses números alarmantes, visto que nenhum desses conflitos, com exceção do caso colombiano, se encaixa na definição legal de conflito armado. Deslocados internos e refugiados devido à violência criminal não são reconhecidos como tais perante o direito internacional, tornando-os inaptos para apelar a organismos internacionais por proteção. Nesse vácuo legal, inciativas relacionadas à mediação têm desempenhado um papel ainda mais importante nos processos de resolução de conflitos e redução da violência.
No caso de El Salvador, por exemplo, uma trégua entre duas gangues foi negociada em março de 2012, resultando numa redução imediata e significativa na taxa de homicídio diária. Dois mediadores externos desempenharam papéis importante no processo de negociação dessa trégua: David Munguía, ex-insurgente e então conselheiro do governo, e Fabio Colindes, um bispo católico e núncio papal. No acordo, as gangues concordaram em pôr fim ao recrutamento forçado de crianças e jovens, em respeitar o status de zonas de paz de escolas e ônibus e em reduzir os ataques sobre forças de segurança. Como resultado, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) foi convidado a contribuir pela primeira vez desde o início da Guerra, estabelecendo uma missão especial para o monitoramento de direitos humanos nas prisões do país em outubro de 2012.
A despeito dessas realizações, a reação da opinião pública ao acordo foi dividida: a oposição política, advinda de setores conservadores, argumentou que o tratado acabou por recompensar ações violentas ao conferir voz aos membros das gangues; outros consideraram o tratado como uma forma de reduzir a violência e reintegrar os membros das gangues à sociedade. O próprio governo desempenhou um papel ambíguo ao não admitir qualquer participação nas negociações e, ao mesmo tempo, dar declarações contraditórias, o que gerou confusão e alimentou um sentimento de desconfiança. Em 2013, o processo enfrentou contratempos, na medida em que o Tribunal Constitucional anulou a nomeação de Munguía como ministro da justiça e segurança pública e forçou o presidente Funes a reestruturar o gabinete de segurança. O novo ministro nomeado, Ricardo Perdomo, é conhecido por ser um crítico severo do tratado.
O panorama hoje permanece um tanto sombrio: o novo presidente, o ex-insurgente Salvador Sánchez Ceren, disse que iria descontinuar o apoio ao tratado. Líderes de gangues foram mandados de volta para a prisão de segurança máxima Zacatecoluca. Se comparada a do ano anterior, a taxa de homicídio subiu significativamente: mais de 52%. No entanto, a trégua teve efeitos duradouros sobre o nível de violência em algumas regiões específicas – onde o tratado era robusto e coalizões de atores locais (como prefeitos, igrejas e ONGs) aproveitaram a oportunidade para promover novas políticas o número de assassinatos permanece abaixo da média. Essa tendência é ainda mais notável nas chamadas “zonas de paz”, sete zonas onde a redução de homicídios manteve-se apesar dos retrocessos gerais.
Leia em:
González Bustelo, M. El Salvador Gang’s Truce: A Lost Opportunity? Open Democracy, 18 May, 2015.
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