À Sombra do Cipreste: Notas de uma Viagem ao Irã

Marta Fernández

19/06/2025

 

No dia 18 de junho, fez um mês que estive em Teerã para participar do Tehran Dialogue Forum 2025. O evento reuniu autoridades iranianas e estrangeiras, representantes de Think Tanks, ministros e acadêmicos — num esforço de conferir visibilidade ao país em meio a um cenário internacional adverso. Fui como diretora do BRICS Policy Center, motivada não apenas pela crescente relevância do Irã no cenário geopolítico global — especialmente após sua entrada no BRICS —, mas também pelo desejo de conhecer o país para além dos marcos orientalistas e das representações estereotipadas.

Desde o início, o contraste entre acolhimento e adversidade se fez presente. Durante a conexão em Dubai, enfrentei o primeiro obstáculo: não consegui trocar dinheiro para riais iranianos — um sinal eloquente dos efeitos das sanções ocidentais que pesam sobre o país. Mas, já no voo rumo a Teerã, percebia-se o cuidado com os detalhes: arroz perfumado com açafrão e cordeiro, atendimento gentil.

Cheguei a Teerã ao amanhecer. Da janela do meu quarto, avistava montanhas áridas ao fundo e, ao longe, minaretes que pareciam costurar a cidade com seus cantos. Teerã me recebeu com essa beleza contida — uma imagem que condensava os contrastes que encontraria: o orgulho de uma civilização milenar e a tensão permanente de um país que insiste em existir, mesmo quando o mundo tenta reduzi-lo ao silêncio e às privações.

O fórum teve início com a recitação do Alcorão, como é tradicional. Logo depois, o presidente Masoud Pezeshkian fez um discurso marcante: todos vivemos em uma casa comum, todos têm o direito de viver com dignidade. “Ninguém é mais humano que outros”, disse ele. A violência, segundo suas palavras, começa quando o direito do outro é violado. Em tom direto, denunciou o papel das potências ocidentais em fomentar conflitos, colocando povos uns contra os outros e explorando o petróleo da região, ao mesmo tempo em que criminalizam o Irã e vendem armas para seus vizinhos.

No mesmo discurso, Pezeshkian reafirmou o direito do Irã de manter um programa nuclear para fins pacíficos — com aplicações em agricultura, indústria e saúde — e ressaltou que o país não busca armas nucleares por princípio religioso. Também foi sublinhado, na ocasião, que a participação do Irã nas negociações mediadas por Omã demonstra seu compromisso com uma solução diplomática duradoura, desde que baseada em justiça, fatos concretos e respeito à soberania nacional.

Esse compromisso, no entanto, foi duramente abalado pelos bombardeios lançados por Israel contra o Irã no dia 12 de junho, que atingiram sobretudo, mas não apenas, instalações nucleares e militares, resultando na morte de cientistas e oficiais de alto escalão. A gravidade dos ataques foi interpretada em Teerã como uma violação direta à soberania nacional, levando à suspensão das negociações enquanto os ataques israelenses persistirem. Como declarou o ministro das Relações Exteriores, Esmail Baghaei, em entrevista coletiva: “Será sem sentido participar de um diálogo com a parte [Estados Unidos] que é a maior apoiadora e cúmplice do agressor.” Apesar da suspensão, a posição oficial permanece: o Irã continua disposto a negociar — mas não aceitará qualquer processo conduzido sob coerção ou diante do silêncio internacional frente às agressões.

A urgência da situação em Gaza atravessou todo o fórum, marcado por pronunciamentos firmes contra a violência sistemática e a catástrofe humanitária em curso. A condenação ao genocídio do povo palestino foi unânime entre os participantes. As divergências surgiram, contudo, em relação às propostas de solução para o conflito. Enquanto alguns países do Golfo apoiam a chamada solução de dois Estados — com um Estado palestino coexistindo com Israel, nas fronteiras anteriores a 1967 —, o Irã sustenta que qualquer resolução justa e duradoura deve passar pelo fim da ocupação, o retorno dos refugiados e a autodeterminação plena do povo palestino sobre todo o território histórico.

Além da catástrofe humanitária em Gaza, o tema dos recursos energéticos da região também ocupou lugar central nas discussões. O presidente iraniano destacou que, sem a energia proveniente do Golfo Pérsico, o Ocidente ficaria paralisado. Pezeshkian denunciou o uso estratégico da venda de armas pelos países ocidentais em troca de petróleo, apontando que essa lógica perpetua a instabilidade regional. Diante dos recentes ataques israelenses a alvos iranianos, autoridades de Teerã passaram a considerar a possibilidade de fechar o Estreito de Ormuz — por onde circulam cerca de 30% do petróleo mundial. A ameaça reforçou a importância estratégica dessa rota e reacendeu alertas internacionais sobre o impacto global de um eventual bloqueio no fluxo de energia.

Nos bastidores do Fórum, o clima era tenso e revelador. No primeiro dia, ao chegarmos ao centro de conferência, tivemos de deixar bolsas e celulares do lado de fora. O esquema de segurança era rígido, com revistas constantes a cada reentrada. À época, o protocolo pareceu excessivamente rigoroso — mas, semanas depois, diante do ataque israelense, ficou evidente o nível de vigilância sob o qual aquele encontro já se realizava.

Durante os intervalos do fórum, muitas estudantes universitárias se aproximavam com perguntas sobre o BRICS. Afinal, o Irã agora fazia parte do agrupamento. Esse novo cenário nos convida a uma pergunta incômoda, mas urgente: conseguirá o Brasil, ao sediar a cúpula do BRICS nos dias 6 e 7 de julho, conter a guinada geopolítica que vem marcando as discussões recentes e, em seu lugar, afirmar uma agenda positiva centrada no desenvolvimento e na cooperação Sul-Sul? O BRICS, historicamente, tem defendido um mundo regido por regras e respeito à soberania. Mas até que ponto seus membros estarão dispostos a “comprar essa briga” com os Estados Unidos?

Ao final do seminário, como parte da programação cultural, foi exibido o curta iraniano In the Shadow of the Cypress. Sem uma única palavra, a animação retrata a relação entre um pai e sua filha, isolados à beira-mar, lidando com os traumas da guerra. A baleia encalhada que aparece próxima à casa — impossível de ser salva com os poucos recursos que têm — se torna símbolo da impotência, da perda, mas também da insistência em cuidar, mesmo quando tudo parece perdido. No desfecho, o pai amarra sua antiga embarcação ao corpo da baleia e a deixa afundar — um gesto que é, ao mesmo tempo, renúncia, sacrifício e reparação. Ele solta o passado para libertar a filha, o animal e, talvez, a si mesmo. A baleia retorna ao mar. A filha permanece. E o silêncio do oceano guarda o que foi deixado.

Na cultura persa, o cipreste — árvore esguia e resistente, simbolizada no título do filme — representa resistência e dignidade. Fino e sem sombra, ele permanece de pé. Talvez seja isso que o futuro exija de nós: que saibamos soltar os pesos que nos afundam, mas que continuemos em pé — insistindo no diálogo, na escuta e na construção de uma verdadeira casa comum, para seres humanos, animais e plantas, como destacou o presidente iraniano durante o Fórum.