O primeiro Código Civil Chinês: um sinal dos tempos

Autor: Gabriel Estill

Orientadora: Maria Elena Rodriguez

 

Em 28 de maio 2020, na 3ª Sessão da 13ª Assembleia Popular Nacional (APN), a China aprovou o seu primeiro Código Civil, que entrou em vigor a partir de 2021. Trata-se da legislação escrita mais extensa da República, além de ser a primeira e única legislação codificada na história do país. Nesse sentido, representa um importante passo na direção da aproximação da cultura jurídica chinesa a de outras nações, em congruência com a crescente relevância chinesa na economia internacional e seu papel como liderança global.

Apesar da recente aprovação, os anseios por uma codificação civil não são novos na China. A política de reforma e abertura de Deng Xiaoping estabelecida a partir de 1978 iniciou um novo momento para a cultura jurídica do país, no qual se buscou reconstruir as instituições jurídicas e o direito chinês, elementos que foram suprimidos durante a Revolução Cultural entre 1966 e 1976. Era necessário, então, fomentar a pesquisa e a formação de juristas para avançar a legislação formal sobre os aspectos cíveis do direito chinês.

Parte desse processo foi marcado também pela Constituição de 1982, em que se vê um “movimento de construção de um sistema jurídico verdadeiramente chinês” (BIAZI, 2021, p. 24). Em 1986, há a promulgação das Disposições Gerais do Direito Civil, fortemente influenciada pelas leis da antiga União Soviética. A tradição jurídica chinesa pode ser entendida a partir de uma mistura de filosofias, notadamente: o confucionismo, o legalismo e o taoísmo.

De acordo com a tradição confuciana, as obrigações éticas primárias das pessoas se relacionam com as atividades desenvolvidas durante a vida e, em termos legislativos, isso se traduz na agremiação de práticas costumeiras de acordo com a cultura cotidiana. A influência do confucionismo no direito chinês entra em conflito com o legalismo, que visa a condução de soluções a partir do direito positivado e de sanções institucionalizadas. Não obstante, a influência do taoísmo se deu no sentido da preconização de um equilíbrio natural das forças Yin e Yang, sugerindo o afastamento das regras criadas pelo homem que se distanciem dessa noção.

A partir dessas influências filosóficas, das influências soviéticas, e do processo de reforma e abertura de Deng Xiaoping, o direito chinês cível foi se constituindo a partir de atualizações de leis antigas. A aceleração do processo de reformas e abertura a partir de 1992 com a viagem de Deng Xiaoping ao Sul da China fez com que, desde então, todas as áreas cíveis chineses tivessem suas leis especiais atualizadas. O Código Civil serve como um mecanismo de padronização e reatualização dessas leis, significando um novo momento para a cultura do direito chinês, cujos resultados poderão ser observados a longo prazo.

É notável perceber a discrepância entre as reformas e avanços econômicos chineses em relação à sua cultura jurídica. Em termos econômicos e tecnológicos, é notória a rapidez de inovação, impacto e inserção comercial internacional em comparação a outros atores relevantes no cenário internacional. A tradição jurídica, no entanto, existe em seu próprio tempo e, enquanto a tradição ocidental já se organiza em torno da existência de códigos civis nacionais desde o início do século XIX com o Código Civil Napoleônico, a China se mantém fiel a modernização em seus próprios termos e momentos oportunos.

Os aspectos econômicos e jurídicos, apesar de terem suas atualizações em tempos específicos, constantemente cruzam seus caminhos e se influenciam. Por exemplo, a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, representa um movimento que concilia os dois aspectos. Isso porque, com a participação nesse foro multilateral, a China é levada a atualizar as regras jurídicas domésticas para responder às exigências das normas do comércio internacional, buscando acelerar a inserção na economia mundial e, por consequência, alterando a realidade jurídica do país.

É somente no governo Xi Jinping, então, que é aprovada a proposta de estabelecer um Código Civil. A sessão plenária do 18º Comitê Central do Partido Comunista da China concordou, em 2014, pela elaboração do Código Civil. Foi também estabelecido que o Código deveria ser entregue em 2020, e assim foi feito.

Atualmente, o Código Civil chinês cobre uma gama de assuntos previamente regulados por estatutos independentes. É o caso da lei chinesa de contratos de 1999, a lei do casamento de 1980, lei de adoção de 1991 e a lei de responsabilidade civil de 2009, por exemplo. Os esforços do Código são de exatamente organizar essa legislação do direito privado em um único texto, atualizando-o de acordo com os novos desafios percebidos na cultura civil chinesa – como é o caso do recente aumento do número de divórcios.

No âmbito da cooperação internacional para o desenvolvimento, a implementação do Código Civil Chinês se apresenta como uma oportunidade de não só ter mais clareza sobre os contratos estabelecidos, como oferece uma modernização em relação à lei prévia. O artigo 467 das Disposições Gerais dos contratos estabelece:

“Aplicam-se as leis da República Popular da China aos contratos de joint venture sino-estrangeiras, contratos de empreendimento cooperativos sino-estrangeiros e contratos de exploração e desenvolvimento de recursos naturais cooperativos sino-estrangeiros realizados no território da República Popular da China.”

Além disso, o capítulo XX do livro de contratos se debruça extensivamente sobre o estabelecimento de contratos de tecnologia, incluindo a regulamentação de transferência tecnológica e desenvolvimento de tecnologias. Com isso, é possível perceber a preocupação chinesa com temáticas atuais e o acompanhamento de tendências globais de mercado.

Portanto, o estabelecimento do primeiro Código Civil Chinês representa um novo momento histórico para a legislação cível e cultura jurídica do país, marcada pela crescente inserção chinesa no sistema internacional e papel de liderança global. É uma nova etapa na promoção de direitos individuais e do Estado Democrático de Direito como pilar nas legislações chinesas, misturando as tradições milenares com o pensamento jurídico moderno. Assim, observamos gradualmente a modernização chinesa em seus diferentes setores, sendo o direito civil um fator chave nesse processo.

 

(Foto: Xiong Wei/VCG via Getty Images)


REFERÊNCIAS:

BIAZI, João Pedro de Oliveira de; (org.) Qian, Larissa Chen Yi (trad.). Código Civil Chinês, 1ª Ed., São Paulo: Edulex, 2021.

CARVALHO, Evandro. O primeiro código civil chinês, um marco histórico. China Hoje, 24/07/2020, disponível em: http://www.chinahoje.net/o-primeiro-codigo-civil-chines-um-marco-historico/. Acesso em: 20 de julho de 2021.